NÓS SOMOS MUITAS
Quatro Pessoas
e um livro.

Quando um livro se forma? Quando ganha unidade e força, com suas qualidades e seus defeitos de livro? Quando o livro passa, digamos assim, de uma ideia a algo que podemos chamar, com alguma segurança, de “um livro”?

Tal pergunta norteia muito da teoria contemporânea sobre a literatura. Deixo-a de lado, aproveitando dela apenas a noção de que, sem leitoras e leitores, o livro não se completa. Não que a “mensagem” dependa exclusivamente de quem lê, para só então, devidamente decodificada, mover os que abriram o livro.

Mais que mover, interessa-me tocar quem estiver aí do outro lado, lendo este livro. Tocar com a trajetória que nos trouxe até aqui, ou seja, com o caminho que permitiu ao material reunido ganhar o formato que ele tem hoje, arrastando consigo as dúvidas e as certezas (mais dúvidas que certezas!) que me moveram, num primeiro momento, e que nos moveram — aos quatro que participamos deste livro — , num segundo momento.

Experiências e práticas de composição variadas nos trouxeram até aqui. Mas como definir um livro que contém imagens, sons, línguas e vozes que estão em diálogo e, ao mesmo tempo, mantêm sua autonomia? Desde o primeiro momento em que pensei neste livro, passei a cultivar a ideia de um projeto de caráter coletivo, que hoje envolve, além de mim, Arto Lindsay, Flora Thomson-DeVeaux e Rogério Barbosa. Os quatro nos reunimos numa oficina em Princeton, em meados de 2018, para discutir que livro seria este, e depois no Rio de Janeiro, em 2019, para concluir o projeto. Como acoplar som e imagens num livro sem perder a fluidez de um work in progress?

Como sabem os que amam escrever, o ponto final, capaz de dar ao trabalho seu estatuto final de “livro”, pode ser profundamente arbitrário. Mas o que seria o ponto final de um projeto como este, em que som, imagem, línguas e vozes estão entrelaçados, sem que “som”, “imagem” e “texto” tenham caráter exclusivo? Sem que o som reflita necessariamente o texto, ou que o texto apenas comente a imagem, ou que a imagem ilustre o texto etc.?

O caráter performático de qualquer obra não é nenhuma novidade. No plano dos suportes, há uma tradição de livros-objeto já bastante longeva. Mesmo assim, é sempre um desafio manter a qualidade performática de um livro. Em nossa oficina em Princeton, assumimos o risco de que nosso livro talvez fosse impossível. Abrimo-nos à possibilidade de declarar o projeto fracassado, e chegamos a nos perguntar se não surgiria uma instalação no lugar do livro. Mas este livro não é também uma tímida instalação? Talvez todo livro o seja, em algum grau. Este, porém, quer testar alguns dos limites do que se pode fazer quando há, dentro de um livro, um diálogo a várias vozes.

Em 2019, após a nossa oficina no Rio de Janeiro, Flora, Arto e eu nos reunimos no estúdio Marini, em Botafogo, e gravamos, sob a batuta de Arto e a escuta atenta de Mauro Araújo, as vinhetas que compõem o livro, nos códigos QR. Mais recentemente, Rogério Barbosa se reuniu com Maíra Nassif e Caroline Gischewski para a definição do projeto gráfico, que depois ganhou sua dimensão digital num site associado ao livro: https://nossomosmuitas.com.br

Um esclarecimento sobre as notas que aparecem como “Not a Translator’s Note”: são intervenções de Flora Thomson-DeVeaux a partir de expressões em português cuja tradução ao inglês evoca algum estranhamento. Flora leu o texto a contrapelo e foi colhendo nele momentos que mereciam uma reflexão, em geral bem-humorada, de tal forma que ao final o livro ficou coalhado dessas pequenas ilhas em inglês que o tensionam. Sobretudo, as notas não deixam que a discussão se encerre completamente, ou confortavelmente, nos domínios de um idioma. Elas lembram que quando o sentido parece ter sido esclarecido, há sempre algo mais. Esse “algo mais” é um resto, uma sobra em que se contém algo fundamental que escapou ao original. O livro que você tem em mãos é também uma grande suspeita sobre todo e qualquer “original”.

É claro que o objeto, seja ele na forma de e-book ou em papel, se encerra nos limites do que pode ser um livro: sequência, tamanho e suporte. Sobretudo, ele não é efêmero como uma instalação. Gostaríamos, no entanto, que este livro fosse também, na medida do possível, uma experiência sensória, isto é, uma viagem que não se contenha totalmente numa forma rígida, nem obedeça a uma linha reta: argumento, exposição, conclusão. Em seu caráter compósito, passeando por meios e gêneros, este livro é a nossa conclusão. Não uma conclusão única, edificante, que nos faça sentir que terminamos nossa relação com a obra. A conclusão que buscamos é apenas o final arbitrário, mas nem por isso menos importante, de um percurso.

A despeito dos vários pontos finais com que se tenta transformar a experiência em um discurso coerente, sempre sobra algo, aberto. E se tentássemos parar antes do ponto em que se fixa o relato?

Não há fim possível para a história, assim como não há um “fim” na constatação de Rosi, a cabo-verdiana que conheci em Lisboa e que, sem saber, nos deu o título deste livro, quando sussurrou uma espécie de suave profecia: “Nós somos muitas”.

Bio

Pedro Meira Monteiro é professor titular de literatura brasileira na Princeton University, onde dirige o Departamento de Espanhol e Português e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB, de que foi um dos fundadores. Foi professor-visitante em diversas universidades, dentro e fora do Brasil. É colaborador de revistas como piauí e serrote, e autor, entre outros, de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda (Companhia das Letras/Edusp/IEB-USP, Prêmio ABL de Ensaio 2013), A queda do aventureiro (Relicário) e Conta-gotas (E-galáxia). É um dos coordenadores do projeto multidisciplinar MinasMundo, foi co-curador da exposição Contramemória no Theatro Municipal de São Paulo em 2022, e co-curador da Flip nos anos de 2021 e 2022.

Arto Lindsay nasceu em Richmond e cresceu em Pernambuco. Entre as décadas de 1970 e 1980 estabeleceu-se na cena artística de vanguarda novaiorquina. Como membro do grupo DNA, contribuiu para a fundação da No Wave; com os Ambitious Lovers, desenvolveu um pop subversivo mesclando estilos norte-americanos e brasileiros. Cantor, guitarrista experimental e produtor musical, trabalhou com artistas visuais e músicos como Vito Acconci, Laurie Anderson, Animal Collective, Brian Eno, Matthew Barney, Marisa Monte, Caetano Veloso e Ryuchi Sakamoto. Desde 2004 tem criado desfiles na Bahia, em Veneza e em Hong Kong. Seu último álbum é Cuidado Madame, de 2017 (Northern Spy, com Melvin Gibbs e Kassa Overall.)

Flora Thomson-DeVeaux é escritora, pesquisadora e tradutora, mais recentemente de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que foi publicado pela Penguin em 2020. Nascida em Charlottesville e radicada no Rio de Janeiro, é diretora de pesquisa da Rádio Novelo, onde trabalhou nos podcasts Praia dos Ossos, Retrato Narrado, República das Milícias, Crime e Castigo, e o podcast do Projeto Querino, entre outros. Atualmente prepara uma tradução para o inglês da seção amazônica de O Turista Aprendiz, de Mário de Andrade, também para os Clássicos Penguin.

Rogério Barbosa é artista plástico. Nascido em Pouso Alegre, estudou na Escola Panamericana de Arte, em São Paulo, e foi depois orientando de Carlos Fajardo e Dudi Maia Rosa no Museu Brasileiro de Escultura (MUBE). Participou do 2º Prêmio Gunther de Pintura, no Museu de Arte Contemporânea (MAC-USP), e apresentou trabalhos nas exposições Arte em Movimento, no Sesc Pompeia; 10 artistas, na galeria Baró Senna; A Vastidão dos Mapas, no Santander Cultural; no Museu Oscar Niemeyer (MON); e na mostra individual Ainda Não Está Escuro, na galeria Virgílio, em 2019. É representado pelas galerias Izabel Pinheiro (Barco), em São Paulo, e Ficher Rohr, na Suíça.